domingo, 21 de abril de 2013

INFÂNCIA PERDIDA POR MARCAS DEFINITIVAS


20/04/13
Abuso Sexual de Menores
Infância perdida por marcas definitivas
A maioria dos crimes dessa natureza contra crianças e adolescentes se dá no ambiente familiar, o que dificulta percebê-lo e denunciá-lo. Somente em Goiânia, foram registrados 267 BOs de estupro em 2012 na DPCA. Neste ano já são 95
Ketllyn Fernandes

Um assunto delicado, melindroso de ser abordado e difícil de ser percebido, quanto mais denunciado. É dessa forma que o abuso sexual é encarado pelas vítimas, sobretudo quando são crianças, adolescentes, vulneráveis e/ou dependentes dos violentadores. O mesmo ocorre em relação aos pais ou responsáveis quando descobrem a violência contra aqueles que estão sob sua tutela.
O trauma, que muitas vezes não resulta em marcas físicas e que, quando as deixa, na maioria dos casos são definitivas, reflete por toda a vida do abusado, como ressalta a psicóloga Luana Oliveira de Souza Jorge, que há 12 anos atua na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Goiânia.

Antes de abordar o tema, ela esclarece que pedofilia e abuso sexual de menores não podem ser encarados como mero sinônimo. "A pedofilia é um transtorno que está classificado no CID [Classificação Internacional de Doença] 10 (F 65.4), ou seja, um termo clínico, onde a característica do sujeito portador deste transtorno é que sua líbido está totalmente voltada para crianças e adolescentes pré púberes. Dificilmente os pedófilos conseguem se envolver sexualmente com adultos por muito tempo”, esclarece, frisando que muitos pedófilos nunca cometeram ou virão a cometer qualquer prática criminosa.

Ela explica que efeitos do abuso sexual vão depender de alguns fatores, entre eles a idade da criança, quando o abuso foi iniciado, bem como a duração do abuso. Neste caso, quanto mais tempo, mais difícil é lidar. “Se houve violência, se houve ameaça, quem é o abusador; quando intrafamiliar é mais difícil para a criança lidar com tudo”, explica a psicóloga, ressaltando que na maioria dos casos não existe sinais físicos (rompimento himenial ou anal). “Mas os efeitos psicológicos de uma masturbação, de um toque genital, de um sexo oral, ou de qualquer contato sexual, estará presente e dificilmente é apagado da memória.”

Segundo a especialista, as consequências vêm em curto, médio e longo prazos, por meio de pesadelos, irritabilidade, comportamento sexual inadequado, dificuldades escolares, medo, culpa, incontinência urinária ou dificuldade de controlar o esfíncter anal para a eliminação de fezes, a chamada encoprese. “Na adolescência podem ser percebidos agressividade, automutilação, retraimento, distúrbios alimentares, sintomas psicossomáticos, práticas sexuais inadequadas”, diz. O efeito mais grave do abuso sexual refere-se aos quadros depressivos, cuja pior consequência é o suicídio.

Em 2012 foram registrados na DPCA de Goiânia 267 ocorrências de abuso sexual, sendo que a delegacia recebeu igual número de denúncias anônimas no mesmo período. Já em 2011, a quantidade foi relativamente menor, embora alarmante, uma vez que se refere somente à capital: 254 boletins de ocorrência e 311 denúncias anônimas. Até o último dia de março deste ano houve o registro de 95 abusos sexuais e 59 denúncias anônimas.

“A maioria das investigações da DPCA se inicia com base nos boletins de ocorrências registrados pelos responsáveis legais das vítimas, ou mesmo por alguns parentes. Parte da demanda chega por meio dos Conselhos Tutelares, Polícia Militar, comunicação de crime por parte de unidades de saúde e de instituições de educação, e, ainda, por requisição do Ministério Público”, informa a delegada Simelli Lemes Santana, há dois anos e três meses na área de violência contra menores e titular da DPCA.

Quanto ao considerável número de denúncias, a delegada ressalta que somente cerca de 10% se confirmam, e alerta: “O que atrapalha o serviço e o bom andamento da delegacia são as denúncias falsas,  que muitas vezes são motivadas por pessoas que apenas querem prejudicar os denunciados. Nesses casos acabamos desperdiçando tempo e os policiais que poderiam estar atuando em casos graves.”

Pontuando se tratar de dados aproximados, Simelli Lemes informa que cerca de 60% das investigações movidas pela DPCA apontam familiares como sendo os autores do abusos sexuais, “dentre eles, os padrastos vêm em primeiro lugar, seguidos de perto pelos pais.” Em seguida, estão pessoas com outros graus de parentescos, como tios, avôs, primos e irmãos; e outros 30% dos casos são praticados por conhecidos das vítimas, como padrinhos, amigos, vizinhos da família e “alguns namorados das vítimas menores de 14 anos, as quais mesmo consentindo na prática do ato sexual, por serem consideradas vulneráveis, são vítimas de estupro”. Ou seja, o perigo está dentro de casa ou próxima a ela e, portanto, de difícil prevenção e identificação do culpado. Apenas 10% dos casos são praticados por autores desconhecidos.

A psicóloga Luana Jorge explica que a denúncia por parte da vítima de um abuso intrafamiliar é extremamente complicada, seja pela vergonha ou receio de não ser levado a sério, como pelo medo, quando há ameaça a sua integridade física ou de familiares. “A criança acaba internalizando que é a responsável por manter a família unida, mesmo que pra isso tenha que ser submetida aos abusos.”

Crime hediondo, o estupro de vulnerável é tipificado no artigo 212, do Código Penal, com as ampliações e gravames acrescidos com a nova redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009, que prevê reclusão de seis a dez anos em caso de constrangimento sob violência ou grave ameaça, ou quando há conjunção carnal. A pena é aumentada para (de) oito a 12 anos caso a violência sexual resulte em lesão corporal grave ou quando a vítima é menor de 18 anos.

Dificuldades de elucidação e impunidade

A advogada Mônica Araújo de Moura, que há mais de quatro anos integra e, atualmente, preside a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO) frisa se tratar de um crime de difícil elucidação, por ocorrer, como ressalta também a delegada Simelli Lemes, em grande parte no ambiente familiar. “Por isso, que devemos chamar a atenção da sociedade para qualquer ato suspeito e que denunciem à polícia, ao Conselho Tutelar e aos disque-denúncias”, destaca a advogada, pós-graduada em Direito Penal e Direito Processual Penal.

A dificuldade de elucidação, e a consequente impunidade, também é o primeiro ponto abordado sobre o tema pela juíza Placidina Pires, titular da 10ª Vara Criminal de Goiânia, onde se concentram a maioria dos processos dessa natureza, embora o sistema de buscas de dados do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) não separe especificamente o quantitativo de processos em tramitação referentes ao abuso sexual de menores e traga informações generalizadas quanto a casos de estupro.

Diante da limitação imposta pelo sistema de buscas, a reportagem conseguiu averiguar apenas que em 2012, somente no que tange a Goiânia, a comarca iniciou 53 processos referentes a estupro, sendo 26 ações penais, um julgamento de ato infracional, ou seja, quando o acusado é menor de idade; um flagrante; dois inquéritos; uma prisão preventiva e outra temporária.  Este ano já são 15 processos referentes a abuso sexual, sendo que no acumulado entre 2009 e março de 2013 o número de processos em trâmite na 10ª Vara, ou que por lá passaram, chega a 228, com a ressalva de que este total diz respeito somente aos crimes ocorridos em Goiânia.

“Não fiz nenhum levantamento a respeito, mas pela experiência diária eu diria que aportam na 10ª Vara Criminal desta capital em média dois crimes de natureza sexual por mês em que a vítima é uma criança ou adolescente. Considero elevada essa quantidade.  E a instrução criminal nesses casos é mais demorada em função da pouca idade da vítima. O juiz precisa redobrar a atenção e o cuidado ao analisar os relatos e provas colhidas durante a investigação e instrução para não cometer injustiças e muito menos fomentar a impunidade”, pontua Placidina Pires.

Neste sentido, a magistrada informa que antes de proferir a sentença sempre pede a realização do teste de Rorschach. “Atuei em inúmeros casos dessa natureza e sei o quanto é recorrente esse tipo de situação, do constrangimento da vítima e familiares e das marcas e traumas indeléveis que o abuso sexual deixa na vida dos envolvidos”, diz a juíza ao recordar um, dentre todos os processos que chegaram até ela e com os quais se envolveu emocionalmente.

Sem dizer a idade exata da vítima, mas pela forma relatada pela magistrada, “de tenra idade”, a juíza conta que a menina, ao retornar de uma visita semanal feita à casa do pai, “relatou à família com a maior naturalidade do mundo os atos praticados por ele, ‘o papai faz isso, faz aquilo ...’”. “A família, estarrecida, se reuniu, discutiu o assunto e, então, para evitar a recidiva [recaída], resolveu acionar o sistema de Justiça, procurando a delegacia de polícia especializada. A vítima foi submetida a exames psicológicos ainda na delegacia de polícia foi constatado que ela apresentava, naquele momento, personalidade de pessoa agredida sexualmente.”

O acusado deste caso foi condenado por Placidina Pires, que antes de sentenciá-lo solicitou a peritos da Junta Médica do TJ-GO a realização de vários testes. A magistrada conta que também colheu novamente o depoimento da vítima, que embora criança, manteve firme a versão dos fatos.  O condenado recorreu e conseguiu ser absolvido pelo fundamento de que não havia provas seguras para a condenação, ou seja, remanescendo dúvida, aplicou o princípio in dubio pro reo. “A família me procurou desesperada, mas não havia mais nada que eu pudesse fazer. Orientei aos familiares conversarem com o procurador de justiça que tinha atuado no feito no segundo grau para recorrer para a instância superior, ou seja, ao STJ [Superior Tribunal de Justiça].”

Ao abordar o abuso sexual intrafamiliar pelo viés da psicologia, Luana Jorge diz não haver nenhuma “explicação aceitável” para sua ocorrência e que atualmente os casos são tratados como endêmicos.“Se enganam aqueles que pensam se tratar de crimes próprios de classes menos favorecidas, o abuso sexual é totalmente democrático, ocorre tanto em famílias mais abastadas quanto nas famílias mais pobres”, reitera.
Nem todo pedófilo concretiza o abuso

Predomina no imaginário do senso comum que vítimas de abuso sexual quando menores se tornam pedófilos e dão início a uma espécie de ciclo vicioso de violência sexual contra outras crianças. E essa tese advém, sobretudo, de uma forma que os agressores têm tentado justificar o injustificável, como exemplifica Luana Jorge. O objetivo do emprego recorrente do termo pedofilia por autores de violência é unicamente reduzir suas penas ou até extingui-las. A psicóloga ressalta que de fato existem casos de abusados sexualmente que desenvolveram a pedofilia, mas essa não é a regra.

“O problema que eu vejo é que como isto se tornou uma ‘desculpa’ para que os autores de violência justifiquem seus atos, como se quisessem que nós [sociedade] sentíssemos pena deles.” Ela conta que já atendeu ocorrências em que o agressor foi vítima de abuso sexual quando menor, mas que, na maioria dos casos, o violentador não foi abusado sexualmente quando criança.

“Os pedófilos têm consciência de que seus atos são moralmente e juridicamente inaceitáveis. Já o abuso sexual pode ser praticado tanto por pedófilos quanto por pessoas que não possuem o transtorno de parafilias. São práticas onde adultos e até mesmo adolescentes se aproveitam sexualmente de crianças e adolescentes por inúmeras razões, como, por exemplo, pelo fato de elas serem mais vulneráveis ou por estarem mais expostas.”

Diante das diferenças, a psicóloga indica que o termo mais adequado seja Autores de Violência Sexual, o AVS. Quanto a um possível tratamento médico para o transtorno psicológico que origina a pedofilia, Luana Oliveira afirma saber de alternativas clinicas, por meio de tratamento medicamentoso, mas principalmente com terapia individual e em grupo.

Como punir?

A juíza Placidina Pires considera elevadas as penas destinadas aos autores de estupros no Brasil, embora reconheça que somente a privação da liberdade do indivíduo não seja suficiente para a devida recuperação. Para a magistrada, apesar de não garantir “uma cura”, no caso dos pedófilos diagnosticados, o tratamento segue como melhor alternativa. Neste caso não há pena, mas sim medida de segurança, que pode ser perpétua.

Indagada sobre a polêmica da adoção de castração química no Brasil para estupradores, presente em proposta de projeto de lei de autoria do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP-RJ) que está sendo objeto de avaliação pelo Conselho de Bioética e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Placidina Pires é categórica:

“Não sou favorável à castração clínica e nem química, porque se trata de procedimentos sem amparo no ordenamento jurídico legal. A nossa Constituição de 88, a propósito, veda a aplicação de penas degradantes e cruéis, que ofendam o princípio da dignidade da pessoa humana, por isso, impossível a sua aplicação sem que haja uma alteração legislativa.”

A juíza considera difícil que venha a ocorrer mudança na legislação para permitir esse tipo de punição, “tendo em vista que a dignidade da pessoa humana é o norte axiológico que orienta toda a interpretação constitucional.”

“Alguns países têm recorrido à castração química e não física como alternativa, pois enquanto a estimativa da melhora com o tratamento psicossocial gira em torno de 50%, com a castração química é mais que 90%. A Grã-Bretanha, por exemplo, permite a castração química voluntária, a Dinamarca admite a castração química para casos extremos e nos estados americanos da Califórnia e do Texas também há em seu ordenamento jurídico a possibilidade de castração química, no caso de uma segunda condenação”, exemplifica.

Até que soluções efetivas sejam elaboradas – leia-se incorporadas a ponto de solucionar o cenário de abuso de menores – e enquanto crianças seguem sendo presas fáceis dos abusadores, o que resta à família, amigos e responsáveis é não duvidar da palavra de quem relata ser vítima de abuso sexual.

A psicóloga sugere conversas de forma explicativa sobre o que pode vir a ser encarado como um abuso sexual pela criança, deixando claro que o familiar mais próximo pode ser o agressor. Ao poder público cabe fomentar mais campanhas nos meios de comunicação e, também, fazer com que os responsáveis pelas escolas abordem o tema. “O que deveria ser rotineiro”, cobra Luana Jorge. Sendo que, depois de consumado o crime, o que mais interessa à vítima e à família daquelas que ainda não têm discernimento devido à pouca idade, é a efetiva punição do abusador.

Alguns casos de abuso sexual de menor noticiados nos últimos anos em que o autor foi identificado:
Casal é preso acusado de estuprar as próprias filhas
Preso homem que seduzia mães para abusar dos filhos
Homem é preso em flagrante por estuprar menina de 7 anos
Pais de garoto de 4 anos são presos por violência sexual
O duplo estupro da criança de Quirinópolis
Cidade de Goiás registra altos índices de pedofilia e estupro
Preso homem que estuprou por dez anos 3 enteadas
Homem cometia estupro anal para manter filha virgem
Mãe e padrasto presos suspeitos de abuso sexual
Preso em Caldas Novas acusado de estuprar duas enteadas em Canoas (RS)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sua participação é muito importante para nós! Em breve seu comentário será moderado e, estando em conformidade com a política de publicação do Blog, ficará visível!
Obrigada!