domingo, 24 de fevereiro de 2013

Uma mulher contra um Estado


Edição 1964 de 24 de fevereiro a 2 de março de 2013
Yoani Sánchez
Uma mulher contra um Estado
Blogueira cubana conversa com Jornal Opção, nega ser agente da CIA, defende fim de bloqueio dos EUA a seu país, afirma que não há socialismo nele e vê “lentidão” em reformas de Raúl Castro
Fotos: Juliana Dias
Renato Dias
Especial para o Jornal Opção de São Paulo
Nada de socialismo, mas sim capitalismo de Estado controlado por um clã familiar.  Assim a blogueira dissidente de Cuba Yoani Sánchez define o regime político de seu país, uma ilha de 11 milhões de habitantes que fez uma revolução em 1959.

Ela esteve na quinta-feira, 21, em um encontro na sede do jornal “O Estado de S. Paulo”. “Der Spiegel”, “New York Times”, “Wall Street Journal”, “Folha de S. Paulo”, “O Globo”, Portal IG e o Jornal Opçãoparticiparam da Conversa com Yoani Sánchez.

O ato foi coordenado por Roberto Lameirinhas, editor de Internacional do Estadão, e pelo jornalista Lourival Sant’Anna Júnior, repórter especial do veículo, formado na Universidade Federal de Goiás (UFG) e irmão da deputadafederal Marina Sant’Anna (PT-GO).

Em peregrinação pelo Brasil, Yoani Sánchez diz que obteve o passaporte para deixar Cuba após 20 tentativas frustradas — durante mais de cinco anos. Não custa lembrar: desde 14 de janeiro o governo cubano permite viagens internacionais.

Yoani Sánchez é editora do blog Generación Y, traduzido para 20 línguas. É o endereço eletrônico onde  afirma ter espaço para debater temas de interesse de Cuba. “A internet cumpre esse papel. É um espaço democrático”, frisa, animada.

Apesar de considerar-se “tímida”, a blogueira mostra desenvoltura em sua relação com a mídia mundial e conta também que leva uma “vida muito louca”. Mais: admite ser mesmo um “fenômeno midiático”. “Mas a fama é um efeito colateral.”

Ela, que em 2012 chegou a ser arrastada e presa por agentes do Estado, reclama da ausência de canais institucionais em Cuba para discutir assuntos nacionais. Apesar disso, acredita que as mudanças ocorrerão. “É um País maravilhoso.”

Segundo a filóloga, o “pecado” do governo Raúl Castro é não ter sido eleito. A dissidente relata que as reformas econômicas vão na direção correta, mas seriam “lentas”. As medidas foram aprovadas no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba.

O Estado abriu setores da economia ao mercado e até faz parceria com o capital internacional. Na área de turismo empresas instalaram-se em Cuba com 49% de participação acionária. No mercado interno, o governo estimulou o empreendedorismo.

Ao “render culto à liberdade”, a blogueira, que se classifica como uma mulher pós-moderna, considera a reforma migratória de 2013 promovida pelo governo cubano como “insuficiente”. A regulamentação de “ir e vir deveria ser um direito do cidadão”.

“Esquizofrênico”. Assim é o sistema de dualidade monetária em Cuba, diz a filóloga. O salário médio no País é em torno de 20 dólares. Ela não cita os números do PIB (Pro­duto Interno Bruto) nem do nível de emprego da nação.

“Tenho muito cuidado com as estatísticas em Cuba”, afirma. Para ela, o embargo econômico dos Estados Unidos a Cuba deveria ser suspenso. “Não funcionou”, resume. É o grande argumento que o Estado tem para explicar e justificar tudo, comenta.

Se o embargo caísse, Yoani gostaria de ver em quem o governo culparia pela crise. “Venho de um País onde não se pode questionar um homem, mas isso não é democracia, é fanatismo”, provoca a ‘enfant terrible’ do país caribenho.

A editora do blog Generación Y diz que o axioma da mídia, em Cuba, é engraçado: — Cuba é o paraíso e o restante do mundo o inferno!

Para Yaoni, é frustrante trabalhar no “Granma”, jornal oficial de Cuba. “Mas é mais frustrante ler o ‘Granma’”, critica. Ao analisar a América Latina, a dissidente afirma temer que a regulação social da mídia possa significar “mordaça” e censura.

“A imprensa em Cuba é de propriedade do Partido Comunista”, desabafa. A autora de “De Cuba, Com Carinho” (Con­texto, 206 páginas) defende um jornalismo “crítico e independente”. Não é o que o “Granma”, de Cu­ba, faz.

A filóloga conta ter sido ameaçada por jornalistas de blogs oficiais antes de embarcar para o Brasil. Ela, que se diz uma “mochileira”, acredita que a repercussão de sua viagem ao Brasil será o “silêncio”. “Mas isso não me preocupa.”
Transição

Lenta, longa, demorada. Assim deve ser a transição política da ditadura dos irmãos Castro para a democracia, em Cuba, calcula Yoani. “O tempo possível será mais demorado, mas tenho esperança. Isso não pode prolongar-se mais.”

Após condenar o que define como absoluta “falta de transparência” e de democracia das instituições em seu País, ela insiste que há, hoje, repressão em ex­cesso de um governo totalitário. Ela cobra eleições li­vres e vida democrática.

Otimista, a blogueira crê que Cuba está esgotando um ciclo. Ela refere-se ao modelo implantado pós-1959. “Onde houve um protagonismo exacerbado da política, da ideologia, de um partido [o Comunista de Cuba], de uma pessoa na vida do País”.

Yaoni enfrentou protestos por onde passou, no Brasil. Em Recife (PE), Feira de Santana (BA) e em São Paulo (SP), na sede da Livraria Cultura. De­fensores do regime de Cuba, com cartazes e faixas nas mãos, a hostilizavam. — Cuba, sim. Ianques, não! Viva Fidel e a revolução.

É o que gritavam estudantes da União da Juventude So­cialista (UJS), braço do PC do B (Partido Comunista do Brasil), além de petistas, contra Yoani. Simpatizantes da blogueira no Brasil também portavam faixas e cartazes: — Deixem Yoani falar.

A dissidente afirma que a utopia da revolução cubana de 1959 é atraente aos jovens do continente. “Mas é uma ilusão”, resume. “Essas pessoas não conhecem Cuba e fazem propaganda de uma Cuba que não existe na realidade”, diz, emocionada.

Os brasileiros se parecem com os cubanos, nota Yoani. Com uma diferença, explica: “São livres”. “Eu gostaria que em Cuba houve liberdade de expressão.” Ela lembra a pregação de Vaclav Havel, o dramaturgo que liderou a Re­volução de Veludo, na antiga Tchecoslováquia, país do bloco comunista.

Cuba tem, em pleno século 21, o menor porcentual de conectividade à internet do continente latino-americano, diz Yoani. Apenas 3% têm acesso à internet. “Mas há muita gente se informando sem a internet.”

Ao lado do senador Edu­ardo Suplicy (PT-SP), Yoani relata que o programa Bolsa Família pode ser copiado numa “nova Cuba”. “Me vejo em uma Cuba onde possa compartilhar uma mesa com um anarquista, um liberal, um social-democrata, um comunista, um democrata-cristão para debatermos temas do País.”

 
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Cuba: entre ‘abertura’ e ‘fechamento’ 

Lourival Sant’Anna
Não há distribuição igualitária dos bens e serviços produzidos em Cuba, já que a nomenclatura comunista abocanha parte considerável dos recursos, disse ao Jornal Opção Lourival Sant’Anna, repórter especial do jornal “O Estado de S. Paulo”. Ele coordenou, na quinta-feira, 21, em São Paulo (SP), mesa-redonda chamada de Con­versa com Yoani Sánchez. Formado na Universidade Federal de Goiás mas radicado há décadas em São Paulo, o repórter e escritor insiste que o Estado cubano viola os direitos humanos, explica que o regime oscila entre abertura e fechamento, analisa os motivos da longevidade do castrismo e aponta também os supostos erros do bloqueio dos Estados Unidos.
Yoani Sánchez diz que não há socialismo em Cuba, mas capitalismo de Estado. O sr. concorda?
Sim. O patrimônio e a riqueza do país não são compartilhados de forma igualitária com todos. Há um grupo, instalado no poder, que se beneficia deles, que recebe vantagens e se coloca acima das leis — em condições que tornam a vida da imensa maioria tão difícil. Essas pessoas vivem nas melhores casas, nos melhores bairros; andam em carros muito melhores; usam hospitais públicos do padrão dos hospitais privados que temos aqui, enquanto a maioria frequenta hospitais públicos piores que os nossos; mandam seus filhos a escolas públicas parecidas com nossas escolas particulares, enquanto a maioria estuda em escolas piores que as da nossa rede pública, com o agravante da doutrinação ideológica; têm acesso a moeda forte, que lhes permite consumir alimentos, medicamentos, itens de higiene, roupas e outros produtos em quantidade e qualidade muito melhor. 
                           
Há violações dos direitos hu­manos em Cuba?
Sim. Opiniões diferentes das do regime são punidas com prisão e execução, sem direito a defesa. Agentes do Estado hostilizam e agridem dissidentes. A imprensa pertence ao Estado e não acolhe opiniões e informações discordantes das do regime. Mesmo com a nova lei de emigração, a saída do país continua sendo controlada pelo Estado, com critérios políticos. A autorização de saída de Yoani Sánchez é uma exceção, não a regra. A maioria dos dissidentes continua não conseguindo essa autorização. O acesso à internet é monitorado e dificultado por tarifas proibitivas. Montar uma rede independente de internet é crime de subversão. O americano Alan Phillip Gross está preso em Cuba desde dezembro de 2009 por ter tentado ajudar cubanos a fazer isso.

Qual a sua análise sobre as reformas de Raúl Castro?
Como escrevi na edição de sexta-feira, 22, de “O Estado de S. Paulo”, a ditadura cubana oscila entre ciclos de abertura e fechamento, na tentativa de sobreviver, contra a vontade da maioria e contra os dados de realidade da economia e do mundo atual. As mudanças introduzidas por Raúl, permitindo a venda de moradias, facilitando o acesso a automóveis e a emigração, representam mais um ciclo de abertura controlada, para diminuir a pressão interna e externa. É como uma válvula de uma panela de pressão. A tampa, no entanto, continua fechada. Ainda não se trata da reforma do sistema.

54 anos: o que explicaria a longevidade do regime cubano?
O aparato repressivo e uma certa acomodação e passividade, elementos da cultura cubana, que se parece com a brasileira.

Há liberdade de manifestação religiosa no País?
Nos primórdios, o regime reprimiu a religião. O brasileiro Frei Betto desempenhou um papel importante, nos anos 80, em convencer Fidel Castro de que religião e “socialismo” não eram irreconciliáveis. A Teologia da Libertação representou essa reconciliação — não só em Cuba, naturalmente, mas em toda a América Latina.

Yoani Sánchez diz querer montar um jornal em Cuba. Há espaço?
Se em 2007 você me perguntasse se havia espaço para o blog de Yoani Sánchez, que ela criou naquele ano, eu teria respondido que não. Claro que um blog é diferente de um jornal. Ela mesma acha que o blog se tornou possível porque a gerontocracia (a expressão é minha, não dela) cubana não entendia a importância das redes sociais, e, quando se apercebeu, era tarde demais. Mas vamos ver o que acontecerá com o projeto de  jornal de Yoani. Francamente, não estou otimista.
O bloqueio dos EUA a Cuba for-talece o discurso dos irmãos Castro, como aponta Yoani Sánchez?
Muitos analistas consideram que, se não fosse o bloqueio, o regime já teria caído. O que é paradoxal, já que o objetivo do bloqueio é derrubar o regime. Com certeza, o bloqueio é usado como justificativa para todas as mazelas da ilha e como cortina de fumaça para as ineficiências internas do sistema.

As ações dos anticastristas de Miami parecem não encontrar eco em Havana. Qual o motivo?
Há uma pluralidade de visões tanto entre os cubanos na Flórida quanto em Cuba a respeito das melhores estratégias a seguir, o que é natural. Nas minhas reportagens sobre a campanha presidencial em 2008 e agora em 2012, constatei a existência de uma nova geração de cubanos na Flórida que deseja a aproximação entre Cuba e os EUA. São pessoas que mantêm laços fortes com sua terra natal e querem poder viajar quando quiser para a ilha, além de uma melhora nas condições de vida, o que inclui o fim do embargo. Atendendo a esses an­seios, Barack Obama reduziu de três para um ano o intervalo permitido de viagens a Cuba.

Como o sr. viu as manifesta­ções contrárias a Yoani Sánchez no Brasil?
Acho enriquecedor que haja no nosso país todo tipo de visão sobre qualquer tema. Num debate com Yoani Sánchez, por exemplo, é ótimo ter a participação de pessoas que apoiam o regime cubano. Isso a provoca a fazer reflexões e relatos interessantes. O consenso empobrece. O problema é quando o radicalismo dessas pessoas as impede de ouvir uma opinião diferente da delas. Isso aconteceu em Feira de Santana, na segunda-feira, 18, quando a exibição do documentário de Dado Galvão, “Conexão Cuba-Honduras”, em que ela é entrevistada, teve de ser cancelada, e na noite de quinta-feira, 21, em São Paulo, quando os manifestantes impediram a sessão de autógrafos na Livraria Cultura. Tristemente, esses manifestantes estão sendo coerentes: o regime cubano, que eles apoiam, também não tolera opiniões diferentes das dele. Em “O Estado de S. Paulo”, como você viu, tivemos um debate livre e respeitoso, e todos ganharam com isso.    

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